28 junho 2010

Um Amor Sincero

No carro as notícias do dia e da semana não eram ouvidas. Dirigia como que num estado de torpor, por entre o éter universal. Sentia uma solidão baseada na carne, implacável por conta de uma fidelidade ferrenha e submissa. Dinheiro não era o problema; poderia comprar o prazer que quisesse, a qualquer hora e lugar. Era jovem e, como costumam dizer, bem sucedido na vida. Ser desejado fazia parte de ser o que era.


Comprou flores, champanhe, atrasou em meia hora a chegada – programada para duas horas mais cedo que o habitual – esperando a barca de sushis encomendados que ela adorava. Uma surpresa que traria como recompensa uma noite especial, como as de anos atrás.


Era culpado, ele sabia, por ter deixado as coisas se tornarem tão glaciais entre eles e estava obstinado – desde àquela visão – a reconquistar as delícias de um passado não tão distante.


A convicção para agir veio da última manhã quando, pela primeira vez em não sabia quanto tempo, viu a esposa no balcão da cozinha, vestindo apenas suas lingeries finas, de um tecido preto que ele não sabia o nome e um roupão branco, semi-transparente. Não lembrava das delícias que aquele corpo podia proporcionar. Ignorava, pelo tempo, a uniformidade perfeita da carne, a rigidez, a alvura. Sentiu agulhadas pelo corpo inteiro quando pensou a quanto tempo não a tocava, não a desejava, e a sensação de espinhos na carne se tornou mais profunda quando veio à mente a idéia de que deveria haver um motivo para conservar toda aquela perfeição, mesmo que o último contato carnal entre eles estivesse ligado a tempos quase imemoriais.


Outro homem? Foi o que imaginou no primeiro momento, mas sentiu vergonha de si mesmo. Tinha horror às condenações sem provas, aos julgamentos imprecisos e meramente opinativos. Decidiu reaver aquela mulher do que quer que fosse; outro homem, do tempo, dela mesma.


Não tentou forçar um contato surpresa, não pretendia assusta-la. Sentou à mesa da cozinha, em silêncio, observando-a preparar seu chá. Ela só percebeu sua presença quando se virou para ver porque o cachorro da casa estava tão alvoroçado. Era um belo animal, pastor alemão de porte, dos que quase não se vê hoje em dia. O marido lhe acariciava a cabeça e o cão, na indecisão entre receber o afago passivamente e retribuir o afeto, acabara pulando, para colocar as patas sobre o colo do dono, e derrubando o pequeno jarro de flores de sobre a mesa.


Ela olhou com ternura enquanto percebia o gesto surpreendido do marido que, envergonhado por ter estado ali a observa-la, baixava os olhos para o montinho de terra úmida sobre a cerâmica imaculada da cozinha. “Vamos limpar esta bagunça”, ela disse, enquanto se aproximava, com um sorriso nos lábios, dos destroços do vaso estilhaçado.


O homem perguntou se ela precisava de ajuda e ela, num tom um pouco mais sério, disse que não, que estava tudo bem. Ele se levantou dizendo que ia se arrumar para ir trabalhar, cambaleante de uma paixão reacesa por aquela ninfa que deslizava pela cozinha e limpava a terra com as mãos com uma graça que parecia pertencer a outro plano material.


Não havia notícia financeira, política, internacional que o fizesse se desligar das memórias do início do dia. O rádio fora ligado por simples hábito. Enquanto pensava, acariciava lentamente o banco do passageiro, como se uma perna de pele lisa e adorável estivesse ali, pousada sob seus dedos.


Teve um pouco de dificuldade para tirar sozinho as coisas do carro e subir o lance de escadas para o primeiro andar. Já na porta, colocou a barca e a garrafa no chão, para procurar as chaves. Quando finalmente as encontrou, por entre os bolsos do casaco, abriu rapidamente a porta, com a habilidade adquirida pelos anos de residência.


A porta dava direto para a sala principal e a visão que teve lhe explicava, na velocidade de um clarão, os acontecimentos da manhã, até então ignorados; o voltar de cabeça com aquela expressão bondosa incompreensível, o sorriso compassivo quando viu seu vaso tão adorado destruído, a paciência em recolher o que restou, a resposta fria quando tentou falar com ela.


A primeira coisa que viu foi o rosto estarrecido da esposa, apoiada sobre o sofá, por entre os cotovelos, a olhar para a porta escancarada, mas foi quando viu o cachorro que o raio da iluminação atingiu seu peito, com a capacidade de pulverizar a mais forte das almas em instantes.


Deixou as flores caírem, não soube o que dizer por vários segundos, enquanto ela se levantava, tentando se recompor. Ele, ainda com uma expressão de terror, deu um passo indeciso e desajeitado para dentro, tropeçando na garrafa. A bebida que regaria aquela noite, pensou, quando olhou para o champanhe no chão.


A mulher, encorajada pelo desencontro de olhares, soluçando de perturbação enquanto lágrimas começavam a minar, perguntou se ele queria dizer algo. Ele a fitou. Agora sem expressão alguma, como um corpo que perdeu o espírito. Sem dizer nada começou a andar em direção ao quarto e, quando passou ao seu lado lhe disse ao ouvido, convicto:


- Amanhã comprarei uma cadela.

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