03 agosto 2020

Imediatismo da morte em Broch.

Hermann Broch, escritor austríaco, denunciou que a ascensão do positivismo, desde os momentos de seu engatinhamento no Renascimento, fez com que o homem fosse obrigado a encarar a morte de uma nova forma, com o mesmo "senso heroico" que encara todas as coisas da vida, com o mesmo senso de realidade palpável. Assim:

"[...] ainda que o imediatismo da morte leve a encará-la olho no olho, ainda que o imediatismo de sua ameaça limite o medo a temor, um temor que se pode rechaçar do mesmo jeito que se rechaça o perigo que o invocou, a incerteza e a escuridão eterna permanecem estendidas em torno da alma humana, a morte permanece oculta no noturno e no incerto, e nessa escuridão mora o medo: o medo da incerteza da escuridão, o medo da solidão que acompanha a alma do ser humano, a começar pelo instante em que abre os olhos para a consciência até aquele em que os fecha para a eternidade, contra esse medo é possível a defesa, e ele também não pode ser amenizado - a alma do ser humano assume a tarefa de se garantir, de se proteger contra o medo".  


21 julho 2020

Café com Apolo

A situação de pandemia e de distanciamento social me fez adotar uma série de pequenos rituais diários. Alguns foram tomados por necessidades logísticas, outros por saúde física e mental. 

Dos últimos, um que tenho apreciado muito é o ato de pegar sol. Algo que nunca fiz com regularidade por conta da rotina de trabalho. 

Atualmente, como estou sempre em casa, por volta da 9 eu passo um café e coloco em minha pequena garrafa térmica. Pego o livro que estou a ler no momento e sento no corredor lateral externo da casa, em um pequeno quadrado em que o sol está disponível entre 09:00 e 11:00. Utilizo um tapete cinza de yoga e sento nesse local por cerca de meia hora, sempre antes das 10 da manhã. Tomo uma ou duas xícaras de café enquanto leio o livro. 

É um pequeno prazer, mas tem um quê de realidade, de ato "sincero" em meio a um tempo em que quase tudo, para mim, parece plastificado, opaco, de mentira. Um simples ritual em nome da vida, sob as bençãos de Apolo. 

09 julho 2020

O gosto dos outros

Muitas vezes acho difícil dizer sobre o que trata um filme. É mais fácil falar sobre o que ele me fez pensar. No caso de O gosto dos outros (França, 2000), ficou em minha mente uma espécie de "relação de poder" estabelecida entre o patrão e os seus subalternos, no que diz respeito aos sentimentos de cada um. O industrialista rico passa por uma desilusão amorosa e durante o processo de amargar sua dor os seus dois empregados mais próximos, o segurança e o motorista, são obrigados - pelo emprego - a estar junto dele, mesmo tendo os seus próprios problemas para digerir. O motorista, por exemplo, acaba de passar por um rompimento com a namorada. Em certo momento da trama tenta compartilhar isso com o patrão, vendo que ele também não está bem. O patrão não tem interesse em ouvir. E a falta de interesse não parece arrogância ou soberba motivada pela posição social. É apenas um homem magoado que quer ficar em silêncio. Ele não parece uma pessoa que poderia ser considerada "ruim", não despreza os empregados, mas o que marca é a posição daquele que pode escolher ficar em silêncio e que pode escolher ser ouvido. Se, em certo momento, o patrão decidisse compartilhar seus sentimentos com algum dos empregados - com o mesmo motorista, talvez - é muito improvável que alguém se negasse a ouvir, não por interesse real em suas angústias, mas pela imposição da posição de empregado. 

Enfim, independente da índole das pessoas envolvidas, minha sensação é a de que as sutis camadas sobrepostas pela posição social delimitam os limites de expressão de todos os sujeitos. O compartilhar de experiências e sensações são desenhados balizados pela posição social, e provavelmente seriam muito diferentes se as posições fossem invertidas, ou se existissem de maneira diferente.  
sentimentos